segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Dois Jovens e um destino

Por Admarino Júnior

Olá a todos,

Continuando os relatos sobre a comunidade de remanescente de quilombos (São José da Povoação), tratarei de alguns aspectos históricos e sociais, nos quais esses afro-descendentes da comunidade em observação são os personagens principais através de narrativas, lendas ou histórias contadas de geração em geração.

As histórias que circulam na memória dos habitantes de São José da Povoação cuja ancestralidade remonta às sociedades mocambeiras ou quilombolas são um grande material para a preservação da memória, mesmo sujeita às mudanças profundas, estas ainda representam um vínculo entre o passado e o presente. Assim o estudo dessas lendas se justifica enquanto manifestações socioculturais onde contar uma história é reavivar o sentido da própria existência desses povos.

A primeira história que relatarei a seguir me chamou muita atenção, primeiro pela sua importância dentro da comunidade e segundo pelo caráter quase que novelesco e romântico da narrativa. Bom, é melhor deixar de suspense e ir logo ao que interessa.




DOIS JOVENS E UM DESTINO

Contam os moradores mais antigos que na vila São José da Povoação existia um casal que se amava muito, mas seu amor era proibido pelo fato de o rapaz ser negro e a moça branca. Os pais da moça não aceitavam o romance, apesar de não existir mais a escravidão e o rapaz já ser um homem livre. A moça pertencia a uma família de descendência portuguesa e os mais antigos não aceitavam que uma menina branca e prendada se apaixonasse por um negro analfabeto. Foi então que os dois resolveram fugir para viverem juntos. Saíram de canoa numa noite chuvosa com destino à cidade de Breves, que fica bem próxima à comunidade, mas eles se perderam na noite, pois estava muito escura e a Baía estava furiosa.

Quando os pais da moça ficaram sabendo do fato, reuniram outros homens da fazenda e foram atrás deles. Era madrugada e os dois jovens já estavam desesperados, pois viram que estavam totalmente perdidos, mas não demorou muito para serem encontrados. Os pais dela mais os trabalhadores que estavam à procura, acharam os dois jovens em um barranco, abrigados nas raízes e galhos de uma árvore na beira do rio.

No dia seguinte foi marcada audiência na frente dos pais, do juiz e do delegado na cidade, para saber como ia ficar a situação deles. Foi quando a moça disse que desistiria do rapaz, mas só se não conseguisse provar para todos que poderiam viver juntos, e que as cores “branca e preta” não precisassem uma da outra. Os pais disseram que era besteira que o branco não precisava do preto, mas mesmo assim aceitaram a condição da moça, pois estavam convictos que ela nunca ia conseguir provar nada. Quando chegou a hora da audiência ela levou consigo um pedaço de giz e outro de carvão, deram para ela a palavra, e ela disse novamente que só não casaria com ele se o preto não precisasse do branco e vice e versa. A moça pegou um pedaço de papel branco e riscou com o carvão e apareceu o preto no branco; depois riscou com o giz no papel e não apareceu nada. Assim ela conseguiu provar que as cores eram dependentes uma da outra.

O juiz ficou muito aborrecido com a perda de tempo e entregou o problema para ser resolvido pelo delegado da cidade. O delegado falou que o amor dos dois jovens era muito forte e que não tinha nenhum crime para prender o rapaz e nem porque separá-los. Os pais ainda tentaram dizer que o rapaz havia roubado a moça e enfeitiçado ela com alguma mandinga, mas a moça que já era maior e ainda dependia da família, desmentiu tudo o que os pais falavam. Como a filha tinha feito uma espécie de “aposta” com os pais e estes não tendo outra saída resolveram voltar para a comunidade e aceitar a sua derrota. A filha surpreendeu seus pais que foram forçados a mudar de opinião em relação ao romance e decidiram casar os dois. Contam os mais antigos que depois do casamento a família foi embora da povoação e a moça permaneceu no povoado ao lado do seu marido.

INTERPRETAÇÃO E SIGNIFICADO DA NARRATIVA

“Dois jovens e um destino” é uma história que conta a vida de um casal que se ama, porém os dois jovens esbarram no preconceito da família da moça, pelo fato do rapaz ser negro, analfabeto e pobre. Os dois tentam fugir para viver sua história de amor, mas são perseguidos pelos que representam a sociedade: a família, a comunidade e a lei. Essa lenda nos mostra aspectos da real situação dos negros, pois apesar da narrativa ter quase dois séculos, muitas pessoas acabam tornando-se preconceituosas e racistas com os mais pobres e com os afro-descendentes.

Em nossa sociedade algumas práticas que parecem “ingênuas” e sem intenção ofensiva acabam por se caracterizarem como racistas: achar que toda pessoa negra é inferior; achar que toda pessoa negra é feia, pouco inteligente; contar piadas humilhantes sobre negros e achar que não é prejudicial; achar que os negros vão praticar alguma violência, roubar, matar, ensinar vícios e coisas ruins para outras pessoas; não querer que uma pessoa de sua família namore, dance ou case com negros; proferir apelidos humilhantes e pejorativos aos negros - esses são algumas formas de racismo. Alguns desses estigmas aparecem na narrativa e são desmentidos pela esperteza da jovem mostrando que é possível viver todos em condições harmoniosas e de igualdade.


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Obs: Todas as informações, fotos, relatos colocados neste blog tem plena autorização e concenso
para divulgação.
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4 comentários:

  1. Que história bonita e ao mesmo tempo nos deixa uma reflexão que raças diferentes podem sim viver em plena convivência na sociedade.
    Beijos

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  2. Desde que o preconceito não domine mentes.

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  3. Saio daqui com o coração cheio de emoção.
    São nessas histórias que aprendemos a ler e superar as entrelinhas da nossa própria vida.
    Grande abraço.

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  4. A historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro tem uma frase interesante, ela diz: "O Racismo se prolifera, principalmente, por meio da educação."
    E por meio da educação também combatemos o racismo.

    É por isso que realmente essa é uma História reflexiva para os dias atuais. Principalmente quando se trata dessa temática que se encontra tão aflorada. É importante de se discuta principalmente com crianças e adolescentes.

    Abraços.

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